quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO BRASILEIRO POR CRIMES HUMANITÁRIOS COMETIDOS DURANTE O REGIME MILITAR.







Marcelo Mendes da Costa, bacharel em direito pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (Sobral-CE) e membro do escritório Plenum Advocacia Empresarial Ltda.







RESUMO



Este artigo tem como objetivo o estudo da responsabilidade civil do Estado brasileiro pela perpetração de crimes humanitários ocorridos durante o regime militar que vigeu no país entre os anos de 1964 e 1985, analisando-se a prescrição das pretensões objetivadas, onde se conclui pela imprescritibilidade das mesmas, pelo fato de se considerar que crimes contra a humanidade e ações que visem à recomposição do patrimônio público são imprescritíveis, a Lei nº 6.683/79 (Lei de Anistia), concluindo-se pela sua inaplicabilidade ao caso em estudo, e as indenizações em face da Lei nº 9.140/95, onde se conclui pela existência da responsabilidade objetiva do Estado e seu dever de agir regressivamente contra os agentes públicos perpetradores de crimes humanitários com fins de se recompor o patrimônio público. Por fim, demonstra-se a obrigação do Estado brasileiro em revelar a verdade, através da abertura dos arquivos e informações sobre o aparato repressor da ditadura militar.



Palavras-chave: Ditadura Militar 1964-1985. Repressão Política. Crimes Humanitários. Lei de Anistia. Responsabilidade Civil do Estado. Direito de Regresso do Estado.

INTRODUÇÃO



Uma sociedade democrática se constrói com o respeito a cada um dos seus, conferindo-se o direito justo e equânime a todos, através da instituição de mecanismos que propiciem a defesa dos direitos humanos individuais e coletivos.

Jean-Jacques Rousseau, ao explicar o pacto social, especificamente no cerne do domínio real, terminou por alicerçar todo o sistema social ao propor que:



[...] em lugar de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima toda a desigualdade física, que entre os homens lançara a natureza, homens que podendo ser dessemelhantes na força, ou no engenho, tornam-se todos iguais por convenção e por direito. (ROUSSEAU, 1762, p. 35). (grifo nosso)



Ao comentar essa passagem, Rousseau (1762, p. 35) afirma que nos maus governos, essa igualdade é apenas ilusória, estando as leis servindo para “manter na miséria o pobre e o rico na sua usurpação”.



O Brasil, durante vinte anos, foi governado por militares, após um golpe militar ocorrido em 31 de março de 1964. O governo militar, que de início seria apenas provisório, tendo como escopo “garantir a segurança nacional”, transformou-se logo numa ditadura, criando um novo Estado, forte, repressor, garantidor de interesses escusos e supressor de vários direitos e garantias individuais.

Em virtude de tal situação, não demorou para que parte da população se insurgisse contra tais atos. Vários foram os movimentos contrários ao regime. Dentre os quais, havia os que propunham a volta à democracia de maneira pacífica, mas também aqueles que defendiam a luta armada como forma de derrubar o governo, com a conseqüente instalação de uma ditadura comunista, seguindo o exemplo da revolução cubana e chinesa.

Assim, assaltos, sequestros e homicídios passaram a fazer parte da rotina de alguns movimentos revolucionários; registrando-se que o presente trabalho se põe contra tais atos, entendendo que a democracia deve ser conquistada através da ampla participação popular e de maneira pacífica e irrestrita; todavia, violência reprimida com mais violência, e ainda mais partindo do Estado, deve ser repelida e condenada.

O governo militar, em virtude desses movimentos, organizou um forte sistema repressor, passando a contra-atacá-los de maneira totalmente desproporcional, promovendo prisões ilegais, homicídios e torturas contra opositores do regime. Várias pessoas foram exiladas, muitas perderam seus direitos políticos, e tantas ainda continuam desaparecidas.

Dessa maneira, percebe-se que na atuação do governo militar prevaleceu o total desrespeito aos direitos fundamentais individuais e coletivos; e não somente naquela época, mas também atualmente, ante a falta de informações sobre as circunstâncias das mortes, torturas e desaparecimentos e principalmente pela inexistência de responsabilização dos agentes públicos autores desses graves delitos.

No meio desse contexto, o presente artigo se presta para fazer um estudo sobre a questão da responsabilidade civil do Estado em virtude da perpetração de crimes humanitários durante o regime militar no período compreendido entre os anos de 1964 e 1985, averiguando-se da possibilidade do Estado exercer o direito de regresso contra os agentes públicos que, por dolo ou culpa, praticaram atos ilícitos considerados como crimes contra a humanidade, além da obrigação do Estado brasileiro em revelar a verdade, através da abertura dos arquivos e informações sobre o aparato repressor da ditadura militar.





1. Fundamentos Caracterizadores Básicos da Responsabilidade do Estado por Crimes Cometidos durante a Ditadura Militar.



No que tange aos crimes humanitários, conforme foi exposto em outro artigo de nossa autoria, existe toda uma estrutura jurídica de direito internacional protetiva dos direitos humanos e garantidora da responsabilização dos perpetradores de crimes de lesa humanidade.

Vários países onde ocorreram crimes contra a humanidade durante regimes de exceção, como Argentina e Chile, tomaram medidas tendentes a garantir a proteção aos direitos humanos, a partir de transições democráticas que se fizeram “respeitando o direito coletivo ao conhecimento público das violações aos direitos humanos.”1

Nos dias 24 e 25 de maio de 2007, na cidade de São Paulo, o Ministério Público Federal em São Paulo, através da Escola Superior do Ministério Público da União e com o apoio da Procuradoria-Geral da República, da Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, dentre outros, com a presença de autoridades e juristas do Brasil, do Peru, do Chile e da Argentina, organizou o Debate Sul-Americano Sobre Verdade e Responsabilidade em Crimes Contra os Direitos Humanos, onde se redigiu um documento denominado Carta de São Paulo.

Num dos considerandos dessa carta, referiu-se que a atitude brasileira de forjar o esquecimento de fatos históricos para se esvair da composição de litígios passados, resulta em:



[...] a) causa de impunidade; b) uma lesão permanente ao direito à verdade e, conseqüentemente, ao princípio democrático; c) um estímulo à violência, aumentando a criminalidade; d) reveladora da idéia de um Estado não transparente, favorecendo a corrupção; e) uma afirmação da desigualdade social pois demonstra que nem todos são iguais perante a lei; f) prejudicial à credibilidade do Brasil em âmbito internacional; [...]



[...] tolerância de grande parte da sociedade a crimes graves como a tortura, bem como a alienação da mídia e das Instituições da Justiça brasileira no processo de transição democrática [...] (grifo nosso)



Em representação ao Ministério Público Federal em São Paulo sobre o tema, o professor titular aposentado da Universidade de São Paulo (USP) Fábio Konder Comparato expôs que, quanto à busca pela defesa dos direitos humanos, através de seu caráter organizacional regido por seus princípios protetivos, figuram em lugar de destaque o da proteção da segurança e o da igualdade perante a lei2.

O princípio da segurança, no que se refere ao tema em estudo, apresenta duas dimensões que nos interessam, a segurança pessoal e a estabilidade das situações jurídicas subjetivas.

A primeira afirmação da proteção da segurança pessoal como dever do Estado foi na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembléia Nacional Francesa em 1789 (art. 2º). A partir de então, tal preceito vem se repetindo nos principais documentos internacionais sobre direitos humanos como a Declaração Universal de 1948, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 e a Convenção Americana de Direitos Humanos.

A consideração da segurança pessoal é assegurada por várias regras declaratórias de direitos fundamentais específicos, como o direito à vida e à integridade pessoal, daí decorrendo o fato de que tal proteção não se esvai nas medidas de prevenção à criminalidade, mas toma sua plenitude pelo sistema de repressão aos crimes ou abusos contra a vida e a integridade das pessoas:



[...] o dever fundamental do Estado é especialmente relevante, quando as violações são perpetradas pelos seus próprios agentes ou funcionários, incumbido às autoridades públicas tomar, desde logo, as medidas disciplinares ou penais cabíveis. (COMPARATO, p. 2, 2007).



No que tange à segurança decorrente da estabilidade das situações jurídicas subjetivas, a mesma é qualificada como uma característica essencial do Estado de Direito, no qual todo poder há de ser exercido com normas gerais e impessoais.

No direito anglo-saxônico esse princípio é consagrado pela fórmula do “due process of law”, que já aparece na Magna Carta de 1215 (art. 39), e também na 14º Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América.

Nossa atual Constituição edita várias regras de aplicação do ora princípio, como: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (art. 5º, XXXVI); e “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV), além de outros. No âmbito do funcionamento da administração pública, a estabilidade das situações jurídicas subjetivas foi acentuada pelos princípios da legalidade e da impessoalidade, presente no caput do art. 37 de nossa Constituição.

Quanto ao princípio da igualdade perante a lei, o mesmo foi o marco inicial do processo de extinção do regime feudal, ratificado nas Revoluções Francesa e Americana, quando se admitiu o princípio de que cada sociedade política é regida por um direito uniforme, aplicado igualmente a todos os cidadãos, sem que se admita a existência de grupos sociais privilegiados em relação aos demais.

No Brasil, esse princípio aparece em todas as Constituições da República, inclusive naquela outorgada pelo regime militar: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas”. (Constituição Federal de 1969, art. 153, § 1º).

A sociedade brasileira conhece copiosamente as agruras ocorridas durante o regime político inaugurado com o golpe militar de 1964, onde agentes públicos praticaram abusos e atos criminosos contra grupos reacionários ao regime. Milhares de indivíduos foram assassinados ou submetidos à seqüestro, cárcere privado, abusos sexuais e torturas, em violação ao princípio citado da preservação da segurança pessoal.

Com o fim do regime militar em 1985, impendia às autoridades públicas do novo Estado de Direito exercer o dever fundamental de agir no sentido da responsabilização pelos desmandos ocorridos no regime antecedente. O que não ocorreu.

Na esfera da responsabilização criminal, deu-se uma falsa interpretação à Lei nº 6.683/79 (Lei da Anistia), onde se entendeu que a anistia abrangia também os agentes públicos, mandantes ou executores, que haviam cometido crimes contra a vida e a integridade pessoal dos cidadãos considerados opositores políticos do regime militar, por se considerar que os delitos praticados pelos agentes do Estado eram conexos com os imputados aos opositores políticos.

O Estado Brasileiro, na década de 90, invocou a idéia de “conciliação e pacificação nacional”, decidindo reconhecer às vítimas ou seus herdeiros uma indenização pecuniária, através da publicação das Leis nº 9.140 de 04 de dezembro de 1995, nº 10.875 de 1º de junho de 2004 e nº 10.559 de 13 de novembro de 2002.

O reconhecimento desse direito a indenização, nos casos especificados pela lei, implicou no reconhecimento oficial de uma responsabilidade civil do Estado. Em virtude disso, já foram despendidas pela União Federal e por alguns Estados federados elevadas somas pecuniárias, todavia, nenhuma ação regressiva foi intentada contra os agentes ou funcionários causadores dos danos ressarcidos com dinheiro público.

Conforme analisado no capítulo 4 desse trabalho, a Constituição Federal em vigor é clara quando dispõe no art. 37, § 6º que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado, prestadoras de serviço público, têm responsabilidade objetiva diante dos administrados, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, vierem a causar, mas devendo intentar contra esses, em caso de dolo ou culpa, a competente ação regressiva. Entretanto, ao que se saiba, até hoje nenhuma medida judicial foi tomada para fazer cumprir esse mandamento constitucional.





2. Análise da Prescrição das Pretensões Objetivadas



No que concerne à prescrição das pretensões de se responsabilizar civilmente o Estado e seus agentes regressivamente pelos crimes em comento, afirma-se que a Constituição Federal de 1988, nos seus incisos XLII e XLIV, considera como imprescritíveis a ação de grupos armados contra o Estado Democrático de Direito e a prática de racismo, enquanto à prática de tortura, constante no inciso XLII também do art. 5º, é considerada crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

Em complemento, argumenta-se também que a Lei nº 6.683/79, anterior à Constituição de 1988, em seu art. 1º, concedeu anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores do Poder Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

Nesse sentido, visualiza-se que a vedação à concessão de anistia a crimes pela prática de tortura, prevista na Constituição Federal de 1988, não poderá retroagir para alcançar a Lei nº 6.683/79, tendo em vista o princípio constitucional da irretroatividade da Lei Penal, disposto no art. 5º, inciso XL, excetuando-se no caso de beneficiar o réu.

Tais argumentos são utilizados para tentar justificar que as pretensões aqui estudadas estão prescritas; entretanto, é sabido que a pauta de valores da Constituição Federal impede que, por decurso do tempo, graves atos de violação a direitos humanos sejam excluídos de apreciação judicial. É o que já decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento do caso Ellwanger:



15. ‘Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento’. No Estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantam a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável.



16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta para as gerações de hoje e de amanhã, para que impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem.” (HC 82.424/RS, Rel. para o acórdão Min. Maurício Corrêa, Pleno, unânime, j. 17/09/03, DJ 19/03/2004).



Embora o caso acima diga respeito ao crime de racismo, suas premissas podem ser igualmente aplicadas aos demais ilícitos com tratamento diferenciado pela Constituição, conforme observado no início do capitulo, quais sejam a tortura e o terrorismo (art. 5º, XLIII) e a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV).

Ademais, numa análise sistemática, percebe-se que a atuação das forças de repressão pode ser compreendida como “ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”, conduta para a qual a Constituição Federal determinou a imprescritibilidade (art. 5º, XLIV). Nesse sentido, é fato que a repressão política se coadunava num aparato de natureza militar, que acometeu diretamente contra a proteção dos direitos fundamentais e era contrária aos princípios do Estado de direito democrático.

Portanto, consoante vontade do poder constituinte originário de 1988, a ação desses grupos armados, independente de se tratar de crimes humanitários, é imprescritível.

No âmbito do estudo dos crimes humanitários, é sobejamente pacífica a consideração de que tais crimes são de lesa-humanidade e que o direito internacional considera como costume internacional o entendimento de que tais ilícitos são imprescritíveis, o que foi normatizado pela Assembléia Geral das Nações Unidas através de diversos tratados e resoluções, o que serviu de fundamentação para decisões do mesmo porte em vários países com casos semelhantes.

O Superior Tribunal de Justiça já tem jurisprudência consolidada quanto à imprescritibilidade das pretensões relativas à reparação dos atos de tortura praticados durante a ditadura militar:



ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE POLÍTICA. PRISÃO E TORTURA. INDENIZAÇÃO. LEI Nº 9.140/1995. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. REABERTURA DE PRAZO.

1. Ação de danos morais em virtude de prisão e tortura por motivos políticos, tendo a r. sentença extinguido o processo, sem julgamento do mérito, pela ocorrência da prescrição, nos termos do art. 1º, do Decreto nº 20.910/1932. O decisório recorrido entendeu não caracterizada a prescrição.

2. Em casos em que se postula a defesa de direitos fundamentais, indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura por motivo político ou de qualquer outra espécie, não há que prevalecer a imposição qüinqüenal prescritiva.

3. O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais conseqüentes da sua prática.

4. A imposição do Decreto nº 20.910/1932 é para situações de normalidade e quando não há violação a direitos fundamentais protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Constituição Federal.

5. O art. 14, da Lei nº 9.140/1995, reabriu os prazos prescricionais no que tange às indenizações postuladas por pessoas que, embora não desaparecidas, sustentem ter participado ou ter sido acusadas de participação em atividades políticas no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e, em conseqüência, tenham sido detidas por agentes políticos.

6. Inocorrência da consumação da prescrição, em face dos ditames da Lei nº 9.140/1995. Este dispositivo legal visa a reparar danos causados pelo Estado a pessoas em época de exceção democrática. Há de se consagrar, portanto, a compreensão de que o direito tem no homem a sua preocupação maior, pelo que não permite interpretação restritiva em situação de atos de tortura que atingem diretamente a integridade moral, física e dignidade do ser humano.

7. Recurso não provido. Baixa dos autos ao Juízo de Primeiro Grau. (REsp 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado, 1º Turma, Maioria, j. 26/11/2002, RSTJ 170/120) (grifo nosso)



E, ainda:



AGRAVO REGIMENTAL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DANOS MORAIS. TORTURA. REGIME MILITAR. IMPRESCRITIBILIDADE.

1. A Segunda Turma desta Corte Superior, em recente julgamento, ratificou seu posicionamento no sentido da imprescritibilidade dos danos morais advindos de tortura no regime militar (REsp 1.000.009/PE, Rel. Min. Humberto Martins, DJU 21.2.2008), motivo pelo qual a jurisprudência neste órgão fracionado considera-se pacífica. [...] (AgRg no REsp 970.690/MG, Rel. Min. CAMPBELL MARQUES, 2º Turma, unânime, j. 7/10/2008, DJ 5/11/2008). (grifo nosso)



Quanto à prescrição das obrigações dos agentes públicos causadores de crimes contra a humanidade suportarem regressivamente o ônus das indenizações, a Constituição Federal definiu no artigo 37, § 5º, que são imprescritíveis as ações de ressarcimento por atos ilícitos que causem prejuízo ao erário.



A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.



Com fulcro em tal dispositivo constitucional, não restam dúvidas quanto à imprescritibilidade das ações que visam à recomposição do patrimônio público.





3. A Inaplicabilidade da Lei nº 6.683/79 ao Tema em Estudo



Ainda durante o governo militar foi editada a Lei nº 6.683/79, denominada Lei de Anistia, cujo art. 1º tem o seguinte teor:



Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.



§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.



Percebe-se pela leitura do artigo 1º que foi concedida anistia penal para os autores de crimes políticos, crimes conexos aos políticos e crimes eleitorais, para todos os perseguidos do regime que sofreram sanções de suspensão de direitos políticos; além de anistia administrativa, para servidores públicos punidos com base nas leis de exceção e trabalhista, para dirigentes e representantes sindicais.

Destarte, verifica-se que não houve na lei qualquer menção ou referência de anistia para obrigações cíveis decorrentes da prática de atos ilícitos, seja em favor dos dissidentes políticos, seja para agentes públicos. O benefício da anistia ficou restrito à matéria penal e, para os perseguidos políticos, alcançou a área trabalhista e administrativa.

Por esse modo, as pretensões vinculadas no sentido de se responsabilizar civilmente o Estado pelos crimes em comento não sofre qualquer influxo da Lei de Anistia de 1979.

É oportuno salientar que em razão dessa interpretação que se deu à Lei de Anistia não houve processos criminais sobre as violações de direitos humanos durante a ditadura militar. O que desvincula totalmente a instância cível da criminal, em virtude de não haver decisão criminal sobre a ocorrência do fato ou da autoria.

Em sentido contrário, existem os que consideram que a Lei de Anistia promoveu definitivamente a reconciliação nacional, proibindo qualquer espécie de responsabilização dos autores de atos desumanos durante as perseguições políticas, penal ou não penal.

Entretanto, entre os crimes de homicídio, tortura, estupro e outros cometidos contra os militantes e os crimes políticos e eleitorais não há liame material, objeto da Lei de Anistia. Crimes políticos são ilícitos contra o Estado e não se confundem com os praticados para a suposta defesa do Poder, o que elimina qualquer possibilidade de nexo entre agentes públicos e militantes políticos. Da mesma forma, a alegação de que a militância política é que ensejou a prática daqueles crimes também é insuficiente para caracterizar o liame necessário à conexão. Não obstante, a conexão não é presumida, há que ser apurada e demonstrada em cada caso concreto.

De qualquer maneira, mesmo que se considerasse que a lei tivesse beneficiado também os perpetradores de violações aos direitos humanos que agiam pelo Estado, o que de fato ocorreu, essa interpretação, da existência de uma “anistia bilateral”, traz introduzida a aceitação de que o governo militar realizou uma autoanistia, em favor de si mesmo e de seus agentes, o que é inválido do ponto de vista jurídico.

O direito internacional, conforme jurisprudência dos tribunais internacionais, nega validade a esses atos, entendendo-se que leis de autoanistia deixam as vítimas indefesas e conduzem à perpetuação da impunidade, encontrando-se em flagrante incompatibilidade com a norma de proteção do Direito Internacional dos Direitos Humanos, acarretando violações de jure dos direitos da pessoa humana.

É de certa maneira inteligível a idéia de que as autoanistias são artifícios de impunidade, posto que são editadas ainda sob as ordens do governo de exceção, o qual concede imunidade penal para os atos cometidos sob suas ordens, sendo lógico que o próprio regime que pratica a violação não pode se “autoperdoar”.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Barrios Alto, tratou dessa matéria de maneira detalhada, seguindo abaixo trecho do voto-vista do juiz brasileiro Antônio A. Cançado Trindade:



5. As denominadas auto-anistias são, em suma, uma afronta inadmissível ao direito à verdade e ao direito à justiça (passando pelo próprio acesso à justiça). São elas manifestamente incompatíveis com as obrigações gerais – indissociáveis – dos Estados-Partes na Convenção Americana de respeitar e garantir os direitos humanos por ela protegidos, assegurando o livre e pleno exercício dos mesmos [...], assim como de adequar seu direito interno à norma internacional de proteção [...]. Ademais, afetam os direitos protegidos pela Convenção, em particular os direitos às garantias judiciais (artigo 8) e à proteção judicial (artigo 25).3



Nesse julgamento, o juiz Cançado Trindade se utiliza da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) para afirmar a incompatibilidade da auto-anistia com o ordenamento jurídico do direito internacional.

Note-se também da impossibilidade de se considerar a anistia aos militares como legítima pelo fato da mesma ter sido bilateral, pois é sabido que para os perseguidos do regime a mesma foi parcial e restrita. Os já condenados por crimes mais graves como terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal, não foram beneficiados pela Lei nº 6.683 por expressa disposição do parágrafo 2º de seu artigo 1º: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal”.

Por outro lado, em 1979, praticamente todos os opositores que não estavam mortos ou desaparecidos já haviam sido processados, presos, banidos ou exilados. Para esses, a anistia serviu apenas para rever condenações, bem como para a libertação do cárcere ou a autorização de retorno ao país. Para os militares e policiais, porém, a anistia foi ampla e geral, abrangendo todo e qualquer crime e dispensando até mesmo a apuração das circunstâncias em que praticados.

Por esses e outros motivos, a Lei nº 6.683/79 é objeto de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) no Supremo Tribunal Federal, impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), onde se questiona, precisamente, a anistia aos representantes do Estado que, durante o regime militar, praticaram atos considerados como crimes contra a humanidade.





4. A Responsabilidade Civil do Estado e dos Agentes Públicos e as Indenizações em Face da Lei nº 9.140/95



Com efeito, é de sobejo conhecimento da sociedade brasileira a participação de atividades ilegais perpetradas por meio do aparato repressor montado pelo governo militar, através da prática de atos de tortura, homicídio e desaparecimento forçado de indivíduos, com o estimulo e a proteção dos superiores hierárquicos desses agentes.

Os atos ilícitos cometidos pelos agentes do regime militar não se deram de maneira isolada. Os DOI/CODI, por exemplo, são uma triste referência na prática de atos atentatórios aos direitos humanos, conforme tratado na Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, em trâmite na 8º Vara Federal de São Paulo, onde requer o Ministério Público Federal a responsabilização do Estado brasileiro e dos ex-comandantes do DOI/CODI de São Paulo, Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, pela “prática de diversos atos ilícitos, principalmente prisões ilegais, tortura, homicídio e desaparecimentos forçados.” (Fls. 05).

A responsabilidade desses agentes surge dos atos comissivos que praticaram e das omissões de seus superiores hierárquicos em evitar que seus subalternos violassem a integridade física e a dignidade dos presos e perseguidos políticos.

Primeiramente, os fatos caracterizadores dos ilícitos cometidos contra os dissidentes políticos configuram plenamente a conduta atribuída ao poder público, a qual, conforme a Teoria do Risco Administrativo, não há necessidade de apuração de culpa, bastando a caracterização dos danos causados por tais condutas, os quais estão visivelmente presentes na memória da sociedade brasileira, através dos relatos dos sobreviventes, bem como dos agentes públicos participantes desses atos.

O último requisito caracterizador da responsabilidade civil, o nexo de causalidade, haverá de ser analisado em cada caso concreto, em virtude das especificidades de cada situação tutelada, onde caberá às vítimas ou ao Ministério Público a propositura de demandas cíveis tendentes a garantir o direito material das vítimas e de seus familiares.

Não obstante, a União Federal e os Estados federados não cumpriram o dever legal de adoção de providências imediatas e efetivas de identificação e revelação desses fatos, sendo um dever-poder desses entes a iniciativa da propositura de tais procedimentos.

Caso haja a efetivação essas medidas, proporcionar-se-á a tutela de três esferas de direitos constitucionalmente abrangidos, quais sejam, os direitos individuais homogêneos das famílias das vítimas em verem definidas judicialmente as circunstâncias e responsabilidades pela morte e demais violências sofridas por seus entes; o direito difuso de toda a população a conhecer esse aspecto da história do País e a ter identificadas as graves violações a direitos humanos; e o direito também difuso da sociedade de estabelecer a responsabilidade pessoal dos agentes públicos pelas indenizações assumidas pela União e por alguns Estados federados4.

No que tange à efetiva caracterização de que o Estado é responsável civilmente por esses fatos, foi editada a Lei nº 9.140/95, a qual reconheceu como mortas as pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e na concessão de indenizações, a título reparatório, pelos danos decorrentes dos atos ilícitos praticados por agentes estatais durante o regime militar, trazendo assim um reconhecimento oficial da Responsabilidade Objetiva do Estado

Entretanto, depois de feitas as devidas indenizações, tudo continuou como era antes. O Poder Público suportou sozinho as indenizações e não foram tomadas medidas no sentido de apurar regressivamente os atos dos agentes públicos causadores desses crimes. Da mesma forma, as Forças Armadas continuam a controlar os arquivos do período ditatorial, e o Executivo e o Legislativo não podem, ou não querem entrar nesta área; neste quadro, ganha sentido as palavras do Coronel Geraldo Cavagnati, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp:



O caso dos desaparecidos políticos não é resolvido no Brasil porque todos foram casos de assassinato. O problema para superar o período da ditadura e suas seqüelas está na dificuldade de as Forças Armadas reconhecerem institucionalmente culpa em tudo o que aconteceu, como já deveriam ter feito, mas não fizeram até hoje e não farão em breve. O que ocorreu não foi uma política isolada dos porões da repressão, mas uma política nacional de segurança que os presidentes da República e seus ministros deste período aprovaram explicitamente ou por omissão. Não há condições no momento de as Forças Armadas fazerem sua mea culpa. (Jornal do Brasil, 23-5-2000).5





1.4.1 Responsabilidade Pessoal dos Agentes Estatais: Direito de Regresso do Estado Brasileiro e Danos Coletivos


A sociedade brasileira, através do Tesouro Nacional, suportou o pagamento de várias indenizações por ilícitos perpetrados por agentes públicos do governo militar. Alcançadas por disposição constitucional, as vítimas, ou seus parentes, fizeram jus a indenizações pelos danos decorrentes dos atos ilícitos a que foram submetidas durante o regime militar brasileiro.

Os atos de violação a direitos fundamentais ocorridos nesse período deram ensejo à responsabilidade objetiva do Estado pelos danos suportados. Em conseqüência, o erário federal e de alguns Estados federados se viram compelidos a despender vultosos recursos no pagamento dessas indenizações, nos termos da Lei nº 9.140/95, mencionada anteriormente, e em virtude de decisões judiciais em processos ajuizados pelas vítimas, conforme caso abaixo citado:



Diante do princípio da responsabilidade civil objetiva do Estado, com apoio na Teoria do Risco Administrativo, é cabível indenização por dano tanto material, como moral, a anistiado político, a quem foi infligido tratamento que atingiu as suas esferas física e psíquica, resultando, daí, na violação de direitos constitucionalmente garantidos e protegidos (CF, art. 5º, X). Assim, comprovado o nexo de causalidade entre o dano e a atuação estatal, incide a regra prevista no art. 37, § 6º, da CF/88. (Acórdão nº 1997.35.00.006010-0, Rel. Des. Fed. Fagundes de Deus, TRF 1º Região, maio, 2005)



Conforme dados do relatório Direito à Memória e à Verdade da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Especial de Direitos Humanos, além das 132 pessoas listadas do Anexo da Lei nº 9.140/95, a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos aprovou 221 casos a ser indenizados, tendo como piso o valor de R$ 100 mil. A maior indenização paga foi aos familiares de Nilda Carvalho da Cunha, no valor de R$ 152.250,00.

Dessa maneira, percebe-se a considerada quantia despendida pela União nesse caso, sem contar as indenizações provenientes de ações judiciais demandadas por todo o país. Infere-se assim ser inconcebível que a sociedade arque os prejuízos causados por condutas que podem estar eivadas de culpa ou dolo de agentes públicos, sendo obrigação do Estado exercer seu direito de regresso para a averiguação da responsabilidade subjetiva desses agentes públicos.

Tal constatação se encontra lastreada na Constituição Federal de 1988, artigo 37, § 6º, da mesma forma como já o faziam as Constituições outorgadas de 1967 (artigo 105) e 1969 (artigo 107).

Todavia, a doutrina nacional, com parcas exceções, não tem salientado que a propositura dessa ação de regresso contra o agente público causador de dano é um dever do Estado. Inclusive a União, em contestação apresentada na Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, afirmou que, quanto a esse tema, a Lei nº 9.140/95 teve como objetivo a “paz social” (p. 538), configurando “no máximo, hipótese legal de reconhecimento de Responsabilidade Objetiva do Estado, não havendo, pois, que se cogitar de dolo ou culpa” (ps. 538/539), afirmando por fim que “inexiste qualquer omissão da União em obter o direito de regresso” (p. 545) 6.

Sem embargos, é dever a duplo título do Estado promover ação regressiva contra tais agentes, a uma, porque, em se tratando de violação a direito fundamental, ao Estado compete agir punitivamente contra o responsável, máxime se este compõe o seu corpo de funcionários. A duas, porque, em se tratando de ressarcimento operado com recursos públicos, isto é, recursos pertencentes primariamente à sociedade, o prejuízo pecuniário não deve ser sofrido por essa, mas há de recair, em última instância, sobre o autor do dano.

Não obstante as indenizações suportadas pelo Estado, a sociedade brasileira suportou e suporta prejuízos de ordem imaterial. O medo, o desrespeito às leis e aos direitos humanos e a omissão da verdade sobre as circunstâncias dos ilícitos perpetrados durante esse período também geraram, e geram danos que devem ser reparados.

São os denominados danos morais coletivos, conforme registra BITTAR FILHO:



[...] dano moral coletivo é a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, é a violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos. Quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico: quer isso dizer, em última instância , que se feriu a própria cultura, em seu aspecto imaterial.7



O posicionamento da impossibilidade de cumulação de indenização por danos morais com danos materiais restou superado e não se aplica ao caso em estudo. Da mesma forma, é oportuno registrar que não há óbice à reparação de danos morais coletivos por fatos ocorridos anteriormente à Constituição de 1988.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça afastou esse vetusto dogma, conforme fixado na súmula nº 37 e nos acórdãos prolatados nos Recursos Especiais nº 475.625/PR8, 646.154/RJ9, 232.103/SP10 e 320.462/SP, citado abaixo:



RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. FATO ANTERIOR A 1988.

É devida a indenização por dano moral, ainda que o fato tenha ocorrido antes da promulgação da Carta Política, pois o ordenamento jurídico já previa anteriormente a responsabilidade civil do causador do dano extrapatrimonial (art. 159 do Código Civil de 1916).11



Portanto, esse trabalho não visa somente à defesa do retorno ao erário dos valores por esse despendido, mas também a reparação de danos coletivos, mediante a promoção dos valores da justiça transicional, a qual será estudada adiante.





1.4.2 Obrigação do Estado Brasileiro em Revelar a Verdade e Promover a Reparação Regressiva


É de amplo conhecimento a existência de práticas atentatórias aos direitos humanos durante o regime militar no Brasil, constatação essa lastreada em diversos documentos, testemunhos, inclusive decisões judiciais, onde é possível colher elementos suficientes para responsabilizar o Estado, como já vem sendo feito, e os agentes públicos pela reiterada violação de direitos fundamentais à dignidade e à integridade da pessoa humana.

Não obstante, o Exército brasileiro insiste em não trazer a conhecimento público os arquivos e informações que permitam conhecer integralmente o funcionamento do aparato repressor do governo militar.

A mera passagem de um governo de exceção para um democrático não é suficiente para reconciliar a sociedade e por fim às violações aos direitos humanos.

Chama-se de justiça transicional o conjunto de medidas necessárias para a superação de períodos de graves violações a direitos humanos ocorridos no cerne de conflitos armados ou de regimes autoritários, implicando na adoção de medidas tendentes a esclarecer a verdade, realizar a justiça, promover a reparação dos danos às vítimas, a reforma institucional das Forças Armadas, órgãos policiais e serviços de segurança, com o escopo de adequá-los aos valores inerentes do regime de um Estado Democrático de Direito, fundado no respeito aos direitos fundamentais e instituição de espaços de memória.12

As medidas de justiça transicional são instrumentos de prevenção contra novos regimes autoritários partidários da violação de direitos humanos como medidas institucionais, especialmente por demonstrar à sociedade que esses atos em hipótese alguma podem ficar impunes. Nesse sentido, reforçam a cidadania e a democracia pela valorização da verdade e da reparação, bem como pelo repúdio à cultura da impunidade e do segredo.

Ademais, é notório que o uso da tortura e da violência como meios de investigação ainda hoje pelos aparatos policiais brasileiros decorre, em grande medida, dessa cultura da impunidade. A falta de responsabilização dos agentes públicos que realizaram esses atos no passado inspira e dá confiança aos atuais perpetradores.

Dessa maneira, torna-se indispensável o cumprimento dos preceitos constitucionais previstos nos artigos 1º, caput, e 5º, XIV e XXIII. Urge que se promova a abertura total de todos os arquivos, documentos e informações, para que sejam conhecidas todas as circunstâncias e todos os responsáveis pelos ilícitos praticados nessa época.

A falta de verdade impede assim o efetivo desenvolvimento da cidadania e da democracia, impossibilitando ao cidadão o pleno exercício do Poder estatal, conforme disposição constitucional no artigo 1º, parágrafo único, “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente”.

Para o exercício de qualquer poder, é pressuposto o conhecimento da situação fática sobre o qual o será exercido. Só o acesso à informação possibilita a compreensão da realidade e da história.

A abertura dos arquivos e a cabal revelação de informações mantidas sob sigilo permitirá a apuração das exatas circunstâncias de cada um dos eventos, assim como a identificação dos responsáveis.

Por conseguinte, deve ser declarada a responsabilidade do Estado a divulgar à sociedade todo o acervo de documentos e informações sobre a estrutura repressora montada pelo governo militar, ante ao fato de que sua omissão atenta contra o direito à memória e à verdade, bem como ao direito dos familiares das vítimas a conhecer as circunstâncias das violências que sofreram.

Nem há como se alegar a existência de sigilo, pois, em primeiro lugar, os prazos máximos previstos em lei para a manutenção de reserva desses documentos já foram ultrapassados, os quais são de 30 anos, conforme art. 23, § 2º da Lei nº 8.159/91, bem como não existe atualmente fundamento que justifique sejam tais informações subtraídas do conhecimento público.

O Constituinte originário de 1988 consagrou expressamente o direito fundamental de acesso do cidadão aos acervos públicos no inciso XXXIII do artigo 5º:



XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.



É fato que tal norma acima citada admite que documentos sejam mantidos sob sigilo, quando imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. É uma exceção razoável e pontual ao direito fundamental, visto que, em situações especiais, é autorizada a omissão de dados e de informações do conhecimento público, pois a revelação precipitada seria danosa para o país.

Entretanto, o sigilo configura-se como medida excepcional, devendo ser formalmente justificado e os documentos objeto dele devidamente inventariados em procedimento próprio e de caráter público. É inconcebível a argüição do sigilo para que sequer ateste a existência desses, sob pena dos mesmos serem destruídos ou até apropriados por particulares.

O Estado tem o dever de demonstrar que o segredo é indispensável, não se podendo transformar supostos riscos em fundamento para omissão de documentos, a imprescindibilidade é requisito expressamente referido na Constituição para a segurança do Estado e da sociedade. Da mesma maneira, não está contido na exceção constitucional o sigilo para preservar interesses individuais de autoridades, ou a possibilidade de esconder da população fatos do passado unicamente por serem “desabonadores de biografias”13.

Assim, não é admissível a estipulação de sigilo eterno ou a fixação de prazos irrazoavelmente longos para a desclassificação do caráter sigiloso do documento. A atualidade do dano decorrente da divulgação do documento deve ser reconsiderada a intervalos certos de tempo, à luz da situação e das perspectivas do momento histórico em que se vive. Por esse motivo, aliás, o Procurador Geral da República propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4077) contra a Lei 11.111/2005, que regula o sigilo de documentos públicos no Brasil, reputando inconstitucional a norma do artigo 6º, § 2º.

É inelutável, portanto, a existência de direito coletivo à plena e integral abertura dos arquivos públicos, inclusive militares, cumprindo salientar que também é dever do Estado adotar ordinariamente as medidas de reparação do Tesouro Nacional relativamente às indenizações que suportou em decorrência dos ilícitos praticados na repressão à dissidência política no regime militar. Tal dever é constitucional (art. 37, § 6º), como visto acima.



[1]Debate Sul-Americano Sobre Verdade e Responsabilidade em Crimes Contra os Direitos Humanos. Carta de São Paulo. Reproduzido em Acesso em: 08 mai. 2009.



2COMPARATO. Representação ao Ministério Público Federal em São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2008.



3Caso “Barrios Alto Vs. Peru”. Sentença de 14 de março de 2001. Parágrafo 44. Disponível em . Acesso em: 13, maio. 2009.



4Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, 2008, p. 62.



5 MARTINS FILHO. O governo Fernando Henrique e as Forças Armadas: um passo à frente, dois passos atrás. Disponível em . Acesso em: 15 maio. 2009.



6 Acesso em: 19 maio. 2009.



7Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, 2003, p. 55.



8Rel. p/ Acórdão Min. FRANCIULLI NETTO, 2ª Turma, maioria, j. 18/10/2005, DJ 20/03/2006.



9Rel. Min. GOMES DE BARROS, 3ª Turma, unânime, j. 21/11/2006, DJ 18/12/2006.



[1]0Rel. Min. RUY AGUIAR, 4ª Turma, unânime, j. 18/11/1999, DJ 17/12/1999.



11Rel. Min. BARROS MONTEIRO, 4ª Turma, unânime, j. 15/9/2005, DJ 24/10/2005.



[1]2BLICKFORD. Transicional Justice (verbete). In The Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity, Macmillan Reference USA, 2004. Reproduzido em: . Acesso em: 12 abr. 2009.


[1]3Ação Civil Pública nº 2008.61.00.011414-5, 2008, p. 70.





CONCLUSÃO



Encerrando os estudos sobre matéria, na esperança de se ter transformado esse trabalho num instrumento de defesa da democracia e dos direitos fundamentais individuais e coletivos e com arrimo em todas as ponderações feitas e discutidas ao decorrer do mesmo, passemos a expor a análise conclusiva a seguir.

Quanto ao estudo da responsabilidade civil do Estado, concluiu-se do papel relevante do Poder Público em estabelecer as diretrizes almejadas pelo corpo social que o instituiu, devendo o mesmo concentrar esforços na busca pelo interesse público, mas, com esteio no princípio da igualdade, procurar preservar o direito dos particulares.

Nesses termos, concluiu-se que é dever do Estado indenizar as vítimas e familiares pelos danos morais e materiais causados pelo regime militar contra esses, o que já vem sendo feito desde a edição da Lei nº 9.140/95, em virtude não só dos danos causados às vítimas, mas em virtude da desvirtuação do papel do Estado perante o corpo social.

Conclui-se que a anistia concedida pela Lei nº 6.683/79 não há que ser alegada para a defesa dos agentes públicos que cometeram tais danos, pelo fato da mesma não ter se referido a vinculações de natureza civil; e que é dever do Estado agir regressivamente contra esses agentes públicos, com o escopo na reparação do Tesouro Nacional relativamente às indenizações que suportou em decorrência dos ilícitos praticados na repressão à dissidência política no regime militar, conforme preceito constitucional (art. 37, § 6º).

Quanto ao estudo da prescrição, concluiu-se da imprescritibilidade das pretensões objetivadas nesse estudo, ante a consideração de que tais crimes são de lesa-humanidade e que o direito internacional considera como costume internacional o entendimento de que tais ilícitos são imprescritíveis, bem como pela determinação constitucional da imprescritibilidade das ações relativas à recomposição do patrimônio público.

Por fim, concluiu-se que, independente da legitimidade do golpe ou dos movimentos reacionários naquela época, era dever do Estado, mesmo sob a administração de um governo de exceção, preservar os direitos fundamentais já reconhecidos no direito interno e internacional, especificamente na garantia do devido processo legal àqueles acusados de terrorismo, assassinatos e seqüestros, os quais deveriam responder por esses atos, mas perante a sociedade, através de um julgamento eivado da ampla defesa, do contraditório e de todas as garantias legais, e não ser alvo de perseguição e torturas, posto que assim, todos saem perdendo, principalmente nossa nação.



REFERÊNCIAS



AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, São Paulo, nº 300, p. 25, 1960.


BASTOS, Lucia Elena Arantes Ferreira. As Leis de Anistia face o Direito Internacional. O caso brasileiro. Tese (Doutorado em Direito). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.



BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 12, p. 55, 2003.



BLICKFORD, Louis. Transicional Justice (verbete). In The Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity, Macmillan Reference USA, 2004.


BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 8. Ed., Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.


BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. Ed. São Paulo: Malheiros, 2006.



COMPARATO, Fábio Konder. Representação ao Ministério Público Federal em São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2008.



DEBATE SUL-AMERICANO SOBRE VERDADE E RESPONSABILIDADE EM

CRIMES CONTRA OS DIREITOS HUMANOS. Carta de São Paulo. São Paulo: 2007. Disponível em: . Acesso em: 08 maio. 2009.



MARTINS FILHO, João Roberto. O governo Fernando Henrique e as Forças Armadas: um passo à frente, dois passos atrás. Disponível em . Acesso em: 15 maio. 2009.


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